Uma das particularidades da educação brasileira, é que todo mundo dá pitaco . Sobre como uma escola deve funcionar, e quais seriam as suas atribuições sociais. Infelizmente, muitas vezes não se observa se esses pitaqueiros de plantão possuem: qualificação na área, ou se pelo menos dominam as particularidades do processo pedagógico. Para muitos, esses requisitos são detalhes insignificantes… O que importa é ter uma opinião e defende-la da maneira mais histriônica, espalhafatosa e agressiva possível.
O que vale é dar a sua opinião, como se somente ter uma opinião bastasse para se qualificar para um debate. Esquecendo que, desde a antiguidade clássica, os filósofos gregos afirmavam: opinião é diferente de conhecimento. Porém, todas essas regras e princípios foram desconsiderados pela Câmara Municipal de Caruaru, ao analisar,votar e desfigurar o Plano Municipal de Educação, PME, ao retirar as questões de gênero.
Foi um espetáculo degradante e vergonhoso, que expõem o quão baixo essa legislatura é capaz de chegar. Mostrando que não há limites para a Câmara Municipal proferir em alto e bom som a sua ignorância e ressaltar a superficialidade do conhecimento que embasam às suas decisões.
Chegando ao cúmulo, a desfaçatez, de um vereador, durante os debates, confundir o uso de apelidos em uma escola com a prática de Bullying. Só isso bastaria para interromper a sessão, e mandá-los fazer o dever de casa, estudar antes de votar. Todavia, já se tornou tradição nessa legislatura aprovar as matérias sem ler e sem entender o que estão votando, e pesar as consequências das suas deliberações.
Usaram como argumento para mutilar o PME, que as questões de gênero deveriam ser trabalhadas pela família; que esse tipo de discussão não caberia à escola fazer. Confundindo a discussão de gênero e identidade sexual com estímulo a sexualidade precoce ou a “doutrinação” ou “estímulo” a homossexualidade.
Quem afirma isso, nunca leu as discussões sobre o tema. Se os vereadores tinham dúvidas sobre o assunto , deveriam promover uma audiência pública sobre o mesmo. Fazem tantas, algumas bem inúteis até. Poderiam até recorrer a outras instituições para votar com embasamento. Afinal, temos na cidade duas instituições de ensino superior, mais do que qualificadas, para esclarecer quaisquer dúvidas que eles tivessem: a FAFICA, ligada a Igreja Católica e a UFPE.
Discutir essa temática, gênero, faz parte sim do papel social da escola; pois como afirmou Hannah Arendt, a escola era o lugar onde a criança nascia para a vida em sociedade. Não apenas para obter conhecimentos, mas para dominar também os valores que permitem a vida em sociedade: a solidariedade, a civilidade, a ética, a fraternidade e a tolerância.
Com essas discussões são analisadas as diferentes maneiras como a sociedade aborda e estabelece os papéis sociais para os homens e as mulheres. Daquilo que convencionou-se dizer que são coisas de homens, ou coisas de mulheres .
Delegar essa discussão somente aos lares, é desconhecer que em muitas casas as mulheres são: oprimidas, violentadas, espancadas e humilhadas. Os meninos, que serão os adultos do futuro, crescem achando que essa é maneira correta de relacionar-se com as mulheres. Que o assédio, o estupro, o desrespeito são coisas de homem, de macho. Desenvolvem-se sem terem outra perspectiva, sem receberem o contraponto a essa visão misógina.
E as meninas crescem entendendo que várias atividades lhe são vetadas apenas por serem mulheres. Aprendendo que o silêncio e a submissão são as formas, aceitáveis socialmente, de se lidar com a violência e o preconceito. E o mais triste foi ver a única vereadora da cidade, defendeu e organizou a continuidade de um absurdo desses. Vivemos sim, numa sociedade machista e patriarcal, e a educação é vital para superar esse ciclo vicioso. E para isso só nos resta citar Carl Jung: “Contra fatos não há argumentos”. E os fatos são:
Fora da escola, 48% das mulheres agredidas foram violentadas em suas residências, segundo dados do PNAD/IBGE de 2009. 3 em cada 5 mulheres relatam ter sofrido violência dentro de relacionamentos e 56% dos homens se reconhece como agressor em algum momento da vida.. Em 2014, o Brasil recebeu 52.957 denúncias de violência contra a mulher. Na última década, cerca de 44 mil mulheres foram assassinadas no país. O Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil mostra que os homicídios de mulheres aumentou 17,2% entre 2001 e 2011, ano em que 4,5 mil mulheres foram assassinadas no Brasil.
E por último, teríamos mecanismos para estimularmos a tolerância e o respeito aos homossexuais. Achar que as pessoas se tornam gays, é ir de encontro a toda produção científica das últimas décadas, nas mais diversas áreas do conhecimento. Ninguém se torna gay, as pessoas nascem, isso é ponto pacífico. Porém, apesar desses dados, os homossexuais são vítimas de toda sorte de preconceito e violência, que começa muitas vezes dentro das escolas e geram sequelas por toda uma vida. Eles, os homossexuais, são considerados e tratados como aberrações, sem vergonhas, pecadores e etc…
Estimular o respeito e a tolerância é papel da escola. Vejamos que tolerância não significa adoção ou imposição de um estilo de vida. O dicionário Houaiss define tolerância como: tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às nossas.
Mas, a Câmara Municipal deu a costas para isso e preferiu usar o argumento da fé, esquecendo que o Estado laico. E que as decisões devem ser basear em critérios objetivos e não subjetivos. Isso sem esquecer que muitas denominações cristãs condenam o uso da fé para perpetuar o ódio e o preconceito. Basta consultar as falas do Papa Francisco, e de lideranças do meio evangélico, como a própria Igreja Universal.
Contudo, mesmo assim eles desfiguraram o PME. E só resta dizer que com essa decisão, eles se tornarão cúmplices de todas as mortes e atos de violência que serão praticados contra as mulheres e os homossexuais em Caruaru. Cada vida ceifada, ou mutilada, deverá também ser atribuída aos 19 edis que derrubaram o veto.
Sendo assim, como forma de protesto, só nos resta propor a Mesa Diretora a retirada das cadeiras do plenário da Câmara Municipal. Para que os nossos edis possam estar no mesmo nível dos debates que praticam naquela casa.
*Mário Benning é Mestre em Geografia e Professor do IFPE/Caruaru.