Opinião – As Margens e o topo – por Mário Bening*

Mário Flávio - 28.09.2012 às 13:49h

A história de Caruaru, da sua transformação de uma fazenda, ao longo do chamado Caminho do Ipojuca, na maior cidade do interior de Pernambuco, esteve sempre marcada por dois acidentes geográficos, o rio e o monte, a margem e o topo. Esses dois elementos da paisagem testemunharam o crescimento populacional e econômico da região, viram lentamente a natureza ceder espaço para a cidade sob a sombra do morro, e, às margens do rio Ipojuca, Caruaru se espalhou.

Do rio tirava-se a água para o consumo da cidade, gerava-se energia elétrica com uma pequena usina. Ao longo do seu curso foi aberto o primeiro caminho interligando o litoral com o interior, depois transformado na BR-25, e foi nas margens desse rio que se instalou a vocação econômica da cidade, a feira. Do morro escavamos suas encostas para lhe conquistar o cume e de seu topo ansiávamos o divino, o sagrado. Tão forte esse sentimento de termos a proteção divina a olhar pela cidade que nomeamos o morro como do Bom Jesus e construímos uma igreja para marcar essa promessa e devoção.

Entretanto, entre as aspirações e as realizações ao longo do tempo, como consequência de gestões indiferentes e de população submissa, esses dois marcos urbanos de Caruaru, tão intrincados na nossa trajetória, tão visíveis e tão presentes, pois ao avistarmos de longe a silhueta do morro e cruzarmos o rio estávamos em Caruaru ou chegávamos à cidade, foram sistematicamente apagados do nosso cotidiano. O rio de fonte de vida assumiu novos rótulos: esgoto, lixão e fonte de endemias e epidemias. Se antes as casas eram viradas para o Ipojuca, hoje lhe dão as costas, evitando o mau cheiro e paisagem desolada. Porém, tal como uma fera ferida, periodicamente com suas enchentes, num último estertor, ele reage e nos força a olhar o tamanho do crime cometido coletivamente por nós, tentando retomar suas margens e sua integridade.

O morro Bom Jesus passou de território do sagrado a território do medo, no final do século XX, expondo como uma ferida aberta as mazelas de um desenvolvimento incompleto vivido por Caruaru. Sobre suas encostas se avolumaram pobres e excluídos, segregados num verdadeiro gueto e dominados pelo crime. Situação essa gerada por uma cidade que enriqueceu, modernizou-se, mas que infelizmente não se desenvolveu. A violência tornou-se tão gritante em seu entorno que uma polêmica e mais uma vez incompleta política de pacificação foi implementada: somente o aparato repressivo subiu as suas encostas, resgatando a população do domínio do tráfico e da violência explícita, mas deixando intocada a violência silenciosa da fome e da miséria.

Numa ação tão confusa e imprecisa que a polícia e os políticos subiram um Morro e desceram um Monte, por não compreenderem o que o morro simboliza para Caruaru, o renomearam como Monte Bom Jesus. Pois talvez fique mais sonoro na propaganda oficial afirmar que se pacificou um Monte, não um Morro… Tanto o rio como o morro nos lembram do quanto falhamos em nosso caminho da vila à cidade, como uma chaga da qual é impossível desviar o olhar.

Porém, mesmo que tardiamente, ainda há tempo de nos reencontrarmos com a nossa história, memória e identidade. De recuperarmos o rio e suas margens, para que nós nos lembremos dos limites que não podemos transpor e dos valores dos quais não devemos abrir mão. De realmente pacificarmos o morro, resgatando seu nome e as pessoas que vivem a sua sombra, incorporando-as à sociedade como cidadãos. E que o seu topo se converta num farol a nos guiar rumo à cidade que todos queremos.

*Mário Bening é Analista Político