Opinião – O Estado e os Indivíduos: sobre as demolições no Parque 18 de Maio – por Felipe Cola*

Mário Flávio - 13.06.2020 às 07:23h

Uma das mais importantes realizações do constitucionalismo liberal do século XVIII foi sua afirmação do indivíduo frente ao poder do Estado: o poder estatal não é absoluto, afirmaram os pensadores da época, pois o próprio Estado existe para proteger os cidadãos. De fato, as pessoas não existem por uma concessão do Estado; é, antes, este último que existe para as pessoas. A propósito, foi justamente a partir dessa necessidade de proteção ao indivíduo que surgiu a ideia de se limitar pela lei o poder dos governantes: nasceu, assim, o moderno Estado de direito.

O século XIX, porém, testemunhou o advento do positivismo filosófico, que adotava uma visão organicista da vida social. A sociedade era vista como uma espécie de grande organismo, a ser administrado de cima para baixo por uma espécie de “elite técnica” e segundo critérios que se pretendiam “científicos”. Nesse paradigma, por que seria necessário ouvir os indivíduos? Eles, no fundo, não saberiam o que seria melhor para eles: caberia à autoridade pública, segundo essa visão, impor a todos sua vontade tecnocrática. 

Também no século XIX, aliás, surgiria uma outra filosofia marcada por menoscabar o indivíduo: o marxismo. Para este, a sociedade estaria dividida não propriamente em indivíduos, mas em classes, e o significado e a importância de cada pessoa seriam definidos simplesmente pela classe a que ela pertencesse. Projetos, liberdades e vontades individuais eram, nessa perspectiva, simplesmente irrelevantes em meio aos conflitos entre as classes e à marcha da história.

Como consequência de todo esse desprezo aos indivíduos, o século XX veria surgir muitos totalitarismos – por exemplo, o socialismo soviético, o nazismo alemão e o fascismo italiano. Em todos eles, o Estado simplesmente esmagou os indivíduos, impôs a eles sua vontade e fez prevalecer a todo custo sua ideologia, usando, por muitas vezes, da mais arbitrária violência. 

Pensemos por um momento nas grandes transferências populacionais promovidas por Stálin, na antiga União Soviética. Nos mais variados contextos – que iam desde perseguições a determinadas categorias de pessoas até transferências compulsórias de mão-de-obra para locais previamente despovoados por “limpezas étnicas” –, o governo totalitário simplesmente deslocava à força populações inteiras de um território a outro. 

Hoje, no século XXI, todos se afirmam contrários às ditaduras e ao autoritarismo, ao mesmo tempo em que constituições dos mais variados Estados – inclusive a do Brasil, em seu art. 1º, III – proclamam solenemente o princípio da dignidade da pessoa humana. Notemos, aqui, a importância da palavra pessoa: a dignidade é primeiramente um atributo de pessoas concretas, antes que se possa referi-la a qualquer entidade coletiva e abstrata – como “o povo”, “a coletividade” etc.. A cláusula da dignidade, portanto, estabelece uma inequívoca primazia das pessoas – vale dizer, dos indivíduos – sobre o Estado. 

Mas, neste ponto, convém indagar como anda o respeito do Poder Público aos indivíduos concretos nos dias de hoje. A dignidade da pessoa humana está anunciada no texto constitucional, mas estará mesmo o Estado levando em conta os indivíduos, em sua condição de pessoas, nos tempos de hoje? A resposta deve ser buscada no dia-a-dia da vida social e política.

Tomemos, aqui, um exemplo que nos é próximo. Recentemente, a Prefeitura Municipal de Caruaru determinou a interdição e a demolição de pontos comerciais instalados no Parque 18 de Maio, alegando estar agindo no cumprimento de uma determinação do Ministério Público estadual. De certo modo, chega a ser surpreendente que algo dessa natureza tenha ocorrido justamente em ano eleitoral, ainda que sob suposta “imposição” do MP – até porque, em tese, nada impediria o Município de judicializar a questão, questionando o posicionamento ministerial, se assim desejasse.

A medida causou generalizada indignação na sociedade caruaruense e deu origem ao ajuizamento de uma ação judicial impugnando a demolição determinada. Proposta a ação, o Poder Judiciário, em decisão liminar, suspendeu, de imediato, a execução da medida – concedendo aos autores da ação o que, no jargão jurídico, chamamos de tutela de urgência.

Controvérsias como essa, porém, abrem espaço para uma importante reflexão. Ora, ao que parece, demolir pontos comerciais unilateralmente e sem maior diálogo com os afetados é medida que expressa uma concepção de governo em que é o Estado quem assume a primazia, e não os indivíduos: ficam esquecidas, nessa toada, aquelas valiosas lições do constitucionalismo clássico a que já nos referimos. 

Não haverá de faltar, sem dúvida, quem ainda beba da fonte positivista e continue defendendo uma concepção autoritária na qual o Estado tudo pode e os cidadãos apenas obedecem – e muitos o farão dizendo fundar-se no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que precisa mesmo ser revisto e limitado à luz da cláusula da dignidade. O inarredável problema é que a supremacia de um Estado onipotente sobre a pessoa é nada menos do que uma terrível ameaça: onde quer que prepondere um tal modelo de administração pública, os indivíduos serão encarados não propriamente como pessoas, mas apenas como súditos. E assim, sob os tratores estatais, correremos o risco de ver destruídos, mais do que pontos de comércio, valores como a liberdade individual, a livre iniciativa e a própria espontaneidade da vida. 

Episódios como o recentemente ocorrido em Caruaru, como tantos outros do cotidiano, realmente põem em relevo a necessidade de se recordar, diariamente, o bom e velho primado da pessoa sobre o Estado. Afinal, basta que o esqueçamos por um breve momento para que, no instante seguinte, nos vejamos – nós, os indivíduos – amesquinhados frente à tirania estatal. Segundo uma conhecida frase de John Philpot Curran – por vezes erroneamente atribuída a Thomas Jefferson –, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”: sigamos, pois, vigilantes, a fim de jamais permitirmos que o Estado, crescendo em demasia, termine por esmagar nossas liberdades e nossos direitos individuais.

(*) Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.