Opinião – Projeto de Lei 7.596/2017: A legislação de revanche – por Francisco Souto Maior*

Mário Flávio - 20.08.2019 às 08:56h

AVISO AO LEITOR: Antes de continuar a leitura do presente artigo, convém uma advertência preliminar: trata-se de uma singela reflexão de naturezajurídico-penal e criminológica acerca do projeto de lei 7.596/2017 (abuso de autoridade), recentemente aprovado pelo Congresso Nacional. Portanto, se procuras um panfleto para a defesa (ou ataque) docacique político “A” ou “B”, não perca seu tempo. Não será neste terreno que encontrarás adubo para alimentar seu discurso de ódio. Cultivadores do livre pensar podem (e devem) continuar a leitura a partir daqui.

USOS E ABUSOS DA AUTORIDADE: O poder punitivo sempre existiu desde o início da sociedade. O nosso impulso vingativo é a primeira expressão desse poder. Se alguém desfere um soco em outra pessoa, é natural haver uma reação (desproporcional ou não) por parte do agredido, como forma de reparar a lesão então sofrida. Quando o Estado toma para si a “reparação” desse dano sofrido (afastando a vingança privada davítima), surge, então, o poder punitivo estatal, ficando o castigo ao agressor incumbido a uma“Autoridade” pública. 

Mas esse poder não pode ser ilimitado, absoluto, sob pena de se cometerem excessos. Para evitar o arbítrio, o poder punitivo estatal deve se basear em algum parâmetro: a lei. A lei, fruto da soberania popular, estabelece os limites para a atuação do poder punitivo das autoridades. Ultrapassado o limite legal, estará a autoridade, pois,abusando de seu poder, sendo passível, também, deuma punição. O abuso surge do uso (impróprio,desvirtuado) do poder conferido a uma autoridade estatal, que age com a intenção de praticar perseguições e vilanias (dolo).

O MARTELO DAS BRUXAS DO CONGRESSO NACIONAL: Sendo a lei o mecanismo de controle do poder punitivo, o princípio da legalidade penal (dada a sua relevância) possui morada no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República de 1988, comoum direito fundamental dos cidadãos. É indispensável que a norma penal seja devidamenteclara em todo o seu teor, sem subjetivismos, a fim de não deixar margem para o arbítrio quando de sua aplicação (nullum crimen, nulla poena sine lege certa). Não sendo clara a lei penal, estará descumprido o mandamento constitucional (inconstitucionalidade). 

O projeto de lei 7.596/2017contém tipos penais excessivamente subjetivos,extrapolando os limites da própria Constituição,senão vejamos: “Art. 9º. Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, “II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível”. O que vem a ser “manifesta desconformidade” e “manifestamente cabível”? São expressões carregadas de conteúdo excessivamente vago. Corre-se o risco de punição a juízes que decretaram prisões e, posteriormente, desembargadores (ou ministro de cortes superiores)entenderem de forma diversa, por ser a sua decisão“manifestamente” contra a lei ou mesmo porque deixou de soltar um acusado quando “manifestamente” cabível. 

Da mesma forma, encontramos outro tipo penal desprovido de clareza, observe-se: “Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada”. Mais uma vez o legislador se utilizou de um termo demasiadamente subjetivo: “sem justa causa fundamentada”. O simples ato de iniciar um inquérito policial poderia dar margem à punição de uma autoridade policial. Não se pode admitir a existência (ainda que de forma velada) decrimes de hermenêutica, ou seja, em razão dainterpretação de um juiz, promotor ou delegado na aplicação de uma norma, sob pena de transformar a nova legislação de abuso de autoridade em um hodierno Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas) – livro utilizado por inquisidores do século XV para punir os hereges.

LEGISLAÇÃO DE REVANCHE E MENS LEGISLATORIS: Resta saber qual a intenção do legislador (mens legislatoris) ao aprovar o projeto de lei 7.596/2017? Estaria o Poder Legislativo preocupado com eventuais abusos praticados por policiais em comunidades carentes? A resposta nos parece negativa ao analisarmos o contexto em quenorma foi criada. Após a prisão de vários políticos por parte de autoridades judiciárias, mormente no âmbito da denominada “operação lava-jato”, criou-se uma atmosfera de verdadeira paranóia no Congresso Nacional. 

No ano de 2016, o Senador Renan Calheiros apresentou a seus colegas congressistas a solução para uma extraordinária “ameaça” que colocava em risco o Brasil: uma lei mais severa de abuso de autoridade. Em meio ao pânico de serem alvos de prisões, alguns de nossos parlamentares decidiram partir para o contra-ataque, uma verdadeira revanche transformada em lei. 

O DIREITO PENAL DO “INIMIGO DE MEU INIMIGO, É MEU AMIGO”: A pretexto de coibireventuais excessos da “operação lava-jato”, os legisladores retribuíram o mal com outro ainda maior: uma lei de abuso de autoridade de alto teorsubjetivo e punitivista, inflacionado, ainda mais, o direito penal. Interessante é ouvir frases como:“quem teme a lei penal são apenas os criminosos”,agora repetidas por juristas fervorosamente ligados, outrora, à causa da limitação do poder punitivo. É o suprassumo da ironia. Receio, em breve, ouvir aexpressão “juiz da lava-jato bom, é juiz morto, por parte destes transfigurados juristas. Necessário dizer: havendo abusos na “operação lava-jato”, sejam os responsáveis devidamente identificados epunidos, nos termos da lei. Percebe-se um fato curioso (para dizer o mínimo) em nosso país: os legisladores não confiam nos aplicadores da lei e, da mesma forma, os operadores do direito não confiam nos legisladores.

UM ABUSO SIMBÓLICO: A novel legislação não irá coibir os abusos perpetrados por autoridades, pois o desvio de poder não é praticado (ao menos em sua maioria) contra congressistas ou empresários.Constrói-se com a nova norma, artificiosamente, um direito penal simbólico, demagógico, lastreado em um discurso meramente punitivista, através leis mais rigorosas contra autoridades estatais. Espera-se que os legisladores atuem em consonância com o interesse público.

Mas o interesse público não pode ser norteado meramente pela pretensão de punir. Ampliar o alcance do direito penal não é a solução para combater eventuais abusos praticados por agentes públicos. Trata-se de um fenômeno demasiado complexo, assim como a violência em geral, a ser resolvido por meio de uma simples “canetada” parlamentar. Discursos inflamados e leis caprichosamente severas não mudam (nem nunca mudaram, nem mudarão) a nossa realidade. Do contrário, não teríamos índices de criminalidade tão alarmantes em nosso país, mesmo possuindo milhares de tipos penais em nosso arcabouço legislativo. É preciso mais: investimentos no sistema de justiça criminal, no sistema social, econômico…enfim, não há fórmula mágica!

*Francisco Souto Maior é Delegado de Polícia eespecialista em direito processual.