Em que (realmente) diferem a esquerda e a direita políticas? – Parte 3 – Por Felipe Cola*

Mário Flávio - 27.02.2023 às 06:25h

Em nosso artigo precedente, começamos a tratar de um fenômeno sociocultural significativo ocorrido na história ocidental: nele vimos como o místico cristão Joaquim de Fiore (século XII), ao dividir toda a história da humanidade em três grandes eras, produziu uma fusão entre as esferas do imanente e do transcendente. Em síntese, Joaquim de Fiore produziu uma imanentização da escatologia, ao propor que a história deste mundo andava numa determinada direção, rumo a uma era futura.

Agora, neste último texto de nossa série, explicaremos como a imanentização da escatologia, iniciada por de Fiore, atuando em uma sociedade secularizada, produziu a divisão, que hoje conhecemos, entre a esquerda e a direita políticas. Em 1789, a Revolução Francesa representou o ápice de uma ruptura que já vinha sendo ensaiada nos escritos dos filósofos: a ideia de que a antiga ordem social e política deveria ser abolida, instituindo-se uma nova em seu lugar.

Essa nova ordem deveria ser inteiramente baseada na razão: os filósofos haviam “descoberto”, à luz da razão, como a sociedade deveria ser; e, uma vez que a sociedade ideal já estava “desenhada”, chegara o momento de implementá-la na prática, por meio de um ato político – a Revolução – que aboliria a ordem sociopolítica anterior – considerada injusta e baseada em “superstições” religiosas – para criar a nova. Agora, a realidade tinha de ser transformada, recriada, para se instituir, no terreno do imanente, a sociedade justa e perfeita. Essa era a proposta da esquerda revolucionária, presente à Assembleia Geral, que se levantava contra a direita, isto é, contra a nobreza e o clero desejosos de manter a velha ordem.

É interessante notar que a secularização trazida pela Modernidade, muito longe de desvincular o homem da religião, acabou por criar uma nova espécie de religião política, baseada no culto da razão, e que se propunha não mais a conduzir o homem a realidades transcendentes, mas a criar, dentro do tempo histórico, uma sociedade perfeita – uma espécie de paraíso terreno. Nada mais distante daquela antiga ordem perene do cosmos, descrita pela filosofia clássica, da qual tratamos no segundo artigo de nossa série. Ainda que inconscientemente, os revolucionários de 1789 – e os filósofos iluministas franceses, seus gurus intelectuais – eram herdeiros da imanentização da escatologia iniciada por um místico do século XII!

Posteriormente, e ainda na esteira do velho de Fiore, surgiriam, da pena de autores como Hegel, Marx e Comte, as grandes filosofias modernas da história. A história estava, para eles, em marcha para a frente e as sociedades imersas num grande processo de destruição e criação constantes, rumo a algum tipo de acontecimento luminoso futuro. As multivariadas explicações da marcha histórica, elaboradas por diferentes pensadores, deram origem às ideologias modernas – verdadeiros sistemas totalizantes de pensamento, com suas muitas “profecias” de acontecimentos luminosos projetados para o futuro –, fosse uma sociedade totalmente governada por técnicos e cientistas – o “mundo ideal” do positivismo – fosse a “sociedade sem classes” apontada por Marx ou qualquer outra coisa concebida pelo ideólogo da vez. Aliás, as ideologias não propunham apenas uma transformação do mundo externo, mas também uma recriação do próprio ser humano, que tinha de ser transformado no “novo homem socialista”, no homem de ciência etc..

E, se a experiência do século XX representou o colapso das ideologias totalitárias – tomemos como exemplo o colapso do bloco socialista no Leste Europeu –, não é menos verdade que o mesmo padrão de raciocínio voltado à destruição do “velho” mundo e à criação de um “futuro melhor” na terra e na história continuou a empolgar mentes e corações. Tudo o que ocorreu foi uma mudança nos paraísos terrestres oferecidos à humanidade como destino: se, no passado, propunha-se o ideal de uma sociedade sem classes, o que agora se sugere são alternativas de “mundo melhor” baseadas na ecologia, na liberação sexual, no fim dos determinismos biológicos, no feminismo, na tecnologia, na saúde do corpo e na longevidade proporcionadas pela medicina etc..

Eis, portanto, o traço comum que podemos estabelecer entre os revolucionários franceses do século XVIII e os esquerdistas modernos: tanto uns quanto outros imanentizam a escatologia, propondo a ruptura com uma ordem presente, considerada ruim, com o objetivo de criação de uma nova ordem – cujos aspectos externos podem variar –, entendida como um mundo melhor, fruto de um projeto originário da atividade racional e que ainda não existiu no plano fático, mas deverá ser atingida pela ação política. A imanentização da escatologia, portanto, nos parece o traço definidor da esquerda. Nessa perspectiva, a realidade boa ou justa é situada em tempo futuro e a ação política – seja violenta ou pacífica – é o meio para a criação do novo amanhã. Já a moral é vista como mutável e transitória, propondo o esquerdista, revolucionário que é, a quebra do que considera como tabus opressores do presente: uma certa ânsia otimista por apressar a história rumo ao futuro é o que o move.

Ilustrativamente, podemos dizer que o esquerdista deseja marchar para a frente, bem como colocar abaixo o edifício arcaico em que se encontra e erguer um novo em seu lugar.
Por outro lado, entre os direitistas da França revolucionária e a direita de hoje, temos também um elemento comum: a ideia de que existe uma ordem perene de tudo o que existe. Não pretende a direita, por certo, congelar a sociedade no tempo, mas construir o novo sobre bases consideradas sólidas – aquelas de sempre, que são as que encaixam com a estrutura perene da realidade. A ordem moral, para o direitista, remete ao eterno e abandoná-la é, para ele, abrir a porta ao desastre. E o conhecimento dessa ordem é facilitado pelas gerações precedentes, já que se pode aprender com seus erros e acertos, mas sobretudo com o que existe de contínuo entre elas: a ideia é olhar mais longe, subindo hoje nos ombros dos gigantes de ontem. Nesse diapasão, as sucessivas gerações transmitem uma à outra um legado a ser conservado e aperfeiçoado, não abolido.

E a razão moderna, não sendo onisciente, está muito longe de ser fonte confiável para a elaboração de projetos de sociedade futura. Uma atitude de prudência é o que move o direitista, esse contrarrevolucionário: ele não ruma para a frente, mas para o alto, buscando construir, geração após geração, novos andares em um edifício de fundações sólidas. (E, ocasionalmente, isso até significará o reparo de alguns andares anteriores cujas paredes possam ter sido derrubadas pelos revolucionários do passado. Se isso acontece, fala-se em restauração mais do que em conservação).
Pensadores diversos – como Russell Kirk, Michael Oakeshott e o já mencionado Scruton – captaram bem a distinção existente entre os polos do espectro político e a expressaram sob linguagens variadas. Kirk contrapõe a política da prudência, que rejeita as utopias, às ideologias, que funcionam como religiões invertidas. Oakeshott defende a política do ceticismo, que duvida da capacidade humana de criar bens universais a partir de projetos da razão, contra a política da fé, com seu otimismo frente às revoluções.

São diferentes abordagens, pensamos, para se discernir entre uma cosmovisão revolucionária, que se entusiasma com uma escatologia imanentizada, e uma outra, transcendentalista e contrarrevolucionária.
A nosso ver, portanto, esquerdismo e direitismo não são apenas conjuntos distintos de propostas ou de medidas a serem adotadas pelos governos: são, ao revés, duas distintas visões da realidade. E, a depender do tempo e do lugar, a ação concreta de governos e políticos pode variar à luz de fatores puramente acidentais; mas essa ação concreta não nos parece critério suficiente para definir a natureza direitista ou esquerdista de tais governos e políticos, já que será mero reflexo externo de uma cosmovisão interna. Por conseguinte, poderemos ter um governo direitista mais inclinado à abertura comercial e um outro a tarifas protecionistas: mesmo assim, ambos não deixarão de ser direitistas.

Poderemos, igualmente, nos deparar com um governo esquerdista mais inclinado a algum tipo de nacionalismo e outro tendente a um internacionalismo à maneira da Onu: ambos serão, porém, esquerdistas.
É, pois, toda uma visão de realidade que leva diferentes governos e partidos a determinadas ações concretas. Notemos, exemplificativamente, que o nacionalismo circunstancialmente adotado por partidos comunistas do mundo inteiro ao tempo do stalinismo soviético estava situado em determinadas condições de tempo e espaço; mas as ações desses partidos também se situavam numa dada visão da realidade – de esquerda – que imanentizava a escatologia e pretendia conduzir a humanidade a um “novo amanhã”. Esse tipo de nacionalismo não poderia jamais ser comparado à política tarifária de, digamos, um Donald Trump, no contexto da guerra comercial contra a China: Trump, por mais “nacionalista” que considerássemos o seu protecionismo, se mantinha um direitista, uma vez que seu governo nem de longe se orientava por uma visão imanentizadora do eschaton. (E, se o caro leitor que chegou a este parágrafo, começou a deliberar mentalmente sobre protecionismo ou livre comércio, fica o alerta: este não é o ponto aqui).

De qualquer forma, também não é incomum que a diferença essencial entre direitistas e esquerdistas enseje que políticas públicas aparentemente semelhantes entre governos de uma e outra orientação se mostrem, na realidade, bastante diferentes. Digamos que dois governos invistam, cada um, exatamente a mesma quantia no funcionamento de uma mesma quantidade de escolas. Suponhamos ainda que, enquanto as escolas de um dos dois governos estejam ordenadas a formar os educandos nas virtudes cardeais clássicas – prudência, justiça, fortaleza e temperança –, as do outro se proponham a formá-los para a abolição das “amarras de uma sociedade patriarcal”. As escolas do primeiro governo, sem dúvida alguma, se amoldarão a uma visão direitista da realidade, em que a plena realização do homem se encontra em fins que o transcendem e numa harmonia com um cosmos ordenado: nessa visão, se problemas existem, eles decorrem de algum desajuste entre seres humanos e sociedades, de um lado, e essa ordem perene, de outro. Já as escolas do segundo governo se ajustarão a uma visão esquerdista de mundo, que imanentiza a escatologia e na qual o momento presente precisa ser superado, para que se crie, dentro do tempo histórico, uma nova ordem, considerada melhor. (Exemplos como esse ilustram, a propósito, a insuficiência de critérios classificatórios puramente economicistas, como qual governo gasta mais ou qual governo investe mais em políticas sociais).

Enfim, nosso objetivo nesta série de artigos foi o de demonstrar que, de fato, existe uma diferença essencial entre as orientações políticas conhecidas como esquerda e direita e que essa diferença diz respeito não às manifestações externas dos vários governos e partidos, mas ao núcleo interno de duas visões da realidade. Com efeito, dois ou mais governos direitistas podem, em meio à contingência da vida política, expressar-se de maneiras bastante distintas – e até opostas! – no plano mais superficial das ações do dia-a-dia, sem que a essência direitista de ambos seja afetada; o mesmo se pode dizer de governos esquerdistas e sua essência comum.
Assim sendo, a quem deseje classificar um determinado governo, partido ou candidato como de direita ou de esquerda propomos que identifique se e em que grau ele se orienta para (I) uma escatologia imanentizada ou (II) para uma cosmovisão que situe o ser humano e a sociedade em uma ordem perene e transcendente.

A primeira posição corresponde a uma visão de esquerda ou – se desejarmos usar uma terminologia atual – progressista; a segunda, a uma visão direitista, a que também poderíamos chamar conservadora ou tradicionalista. Este, parece-nos, é o critério mais seguro para a classificação das posições políticas, uma vez que permite a identificação de suas essências, para além de suas diferenças meramente acidentais.

(*) Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.