Em nosso artigo anterior, explicamos o porquê de, a nosso ver, serem insuficientes alguns dos critérios normalmente adotados para a distinção entre a direita e a esquerda políticas: ocorre que esses critérios usuais costumam se basear em manifestações meramente externas do que pensamos serem duas visões de mundo completamente distintas. Aqui, começaremos a tratar de um certo fenômeno sociocultural ocorrido na história do Ocidente, a partir do qual pensamos ser possível extrair uma base segura para a distinção entre essas duas grandes visões.
O modo como empregamos os termos direita e esquerda na política moderna remonta à Assembleia dos Estados Gerais dos tempos da Revolução Francesa (1789). Na ocasião, a nobreza e o clero sentaram-se à direita do rei, enquanto o “terceiro estado” – ou seja, o grupo que protagonizou a Revolução – à esquerda. De lá para cá, os termos direita e esquerda permaneceram em uso no debate político. E, por mais que existam, sim, diferenças entre um jacobino da Revolução e um progressista dos tempos atuais, temos de concordar com Sir Roger Scruton, quando este afirma existir uma percepção de mundo comum a ambos, que persistiu ao longo do tempo que os separa.
Há, com efeito, algo de semelhante entre a esquerda e a direita francesas do século XVIII e suas homônimas contemporâneas.
Pois bem: segundo pensamos, o verdadeiro critério distintivo entre esquerda e direita repousa em um fenômeno muito bem analisado pelo filósofo Eric Voegelin: a imanentização da escatologia. Aqui, um esclarecimento: na Filosofia, é comum o emprego dos termos imanente e transcendente: o primeiro refere-se a algo que tem em si seu princípio e seu fim e é normalmente aplicado ao mundo material e sensível; o segundo está relacionado a algo que remete a uma realidade externa, superior, sendo aplicado às realidades imateriais ou metafísicas.
Nessa perspectiva, acontecimentos da vida política – a ascensão ou a queda de um governo, as transformações do regime vigente num dado país etc. – são acontecimentos que não teríamos dificuldade em situar no terreno do imanente. Já ideias teológicas como as de redenção da humanidade, o juízo final e o fim dos tempos pertenceriam ao mundo transcendente.
Voegelin observa que, com o fim do Império Romano, a sociedade cristã ocidental se articulou nas ordens da vida terrena e da vida espiritual, tendo representantes para cada uma delas. De fato, estabeleceu-se um equilíbrio de poder entre monarcas – sucedidos pelo Imperador Romano-Germânico – que personificavam o terreno do imanente, do temporal, e o Papa e o clero, que representavam a ordem espiritual, transcendente. As duas esferas da vida se equilibravam e se articulavam como partes de uma realidade e um universo harmônicos: a natureza, a moral, o direito, o poder político e a religião eram, todos, partes dessa grande harmonia.
E essa ordem, que articulava os mundos do imanente e do transcendente, era duradoura – eterna! – e à tarefa de estudá-la dedicaram-se pensadores de grande estatura, como Aristóteles, na Antiguidade, e São Tomás de Aquino, na Idade Média. Todas as coisas estavam, nessa visão, ordenadas de acordo com suas naturezas e suas finalidades: quisesse o ser humano discernir entre o certo e o errado, entre o que devia e o que não devia fazer, entre o belo e o feio e entre o justo e o injusto, deveria extrair dessa ordem perene as respostas que procurava.
No século XII, porém, o místico cristão Joaquim de Fiore distanciou-se desse modo de ver as coisas ao aplicar à história deste mundo o conceito cristão de Trindade: para ele, a história se dividiria em três períodos distintos, cada um deles correspondente a uma das Pessoas da Trindade divina: havia para ele, dentro da história, uma era do Pai, uma era do Filho e uma era do Espírito Santo. Ocorre, porém, que a visão de de Fiore implicava uma verdadeira ruptura com a concepção de mundo até então vigente, pois fundia as duas ordens da vida – a da imanência e a da transcendência – numa só realidade. A Escatologia – do grego, eschaton: último, definitivo, absoluto –, ramo da Teologia dedicado ao estudo de temas como as últimas coisas, o juízo final, o fim dos tempos e o mundo vindouro, se imanentizava: agora, a própria história deste mundo (imanente) evoluía numa determinada direção, rumo a uma era futura que ocorreria neste mundo e dentro do tempo histórico.
Posteriormente, com a Modernidade, ocorreu a secularização das sociedades ocidentais: a religião deixou de ser um centro de ordenação da vida social e os Estados se tornaram independentes da Igreja: deixou de haver, nesse momento, aquele antigo equilíbrio entre os poderes político e espiritual. A partir daí, o Estado moderno se afirmou como ente dotado de um poder único ao qual, dentro de seu território, nenhum outro se poderia contrapor. Esse processo não trouxe, por si, o que hoje conhecemos como “liberdade religiosa”, mas um sistema de poder em que o rei impunha ao povo, numa decisão política, uma determinada confissão religiosa: havia, assim, em cada Estado soberano, “um rei, uma lei, uma fé” – une roi, une loi, une foi.
Em nosso próximo artigo, o último desta série, mostraremos como a imanentização da escatologia, atuando em uma sociedade secularizada, produziu a divisão entre a esquerda e a direita políticas, que perdura até hoje.
*Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.
